19 de maio de 2010

PRIORIDADES

Bem que a gente podia fazer uma reforma para valer, não essas dos políticos e dos papéis, mas alguma coisa pessoal. Vital. A reforma das nossas prioridades. Cansei de ouvir todo mundo reclamando que não tem tempo nem pra respirar, nada mais de conversas à mesa, nada mais de passeio tranqüilo, muito menos de sossego em família.

Amantes, namorados, casais, amigos, todo mundo corre afobadíssimo para cumprir mil tarefas: das quais certamente novecentos e noventa seriam dispensáveis se a gente examinasse direito. Tempo é dinheiro, diziam os pragmáticos, e isso se tornou lei universal. A conta do banco, o colégio dos filhos, o plano de saúde (num pais onde o INSS é meio suicídio andado), o restaurante e o bar, a roupa de grife e a bolsa, até a mochila escolar do momento, sem a qual, é claro, o filho não garante nem que consiga passar de ano. A lista é longa, segundo a preferência de cada um.

Fico imaginando que se a gente fizesse uma faxina em nossos compromissos e deveres, boa parte desapareceria ligeiro no ralo do bom senso, e desapareceria para todo o sempre no nebuloso das nossas iniqüidades mais banais. Sobrariam alguns compromissos, dos quais não há como fugir: provavelmente saúde, prestação do apartamento, escola (a pública estando como está) e alguns outros (poucos).

Comprar não é um dever, quando não se trata do indispensável ou do que faz bem. Comprar pode ser, e tem sido, em grande parte moda, mania, quase neurose. Andar com a roupa do momento pode ser burro e pobre: por que todas as meninas parecendo fantasiadas para desfilarem no mesmo bloco? Por que todas com a mesma sandália só porque alguém na televisão...? Por que pais e mães se sacrificam para poderem dar aos meninos alguns absurdos caros, talvez ridículos? Não quero que meus netos e netas andem muito diferentes de sua turma. Mas não desejaria que seus pais trabalhassem mais horas do que o necessário para lhes permitir algumas insanidades. Não acho que os casais precisem ter apenas, para seu encontro, as poucas horas da noite, exaustos do dia intenso, da hora extra, quem sabe até do trabalho no fim de semana. Se for para sobreviver com dignidade, paciência: muitas vezes tem de ser. Mas muitíssimas vezes não precisaria ser assim. Labutamos como animais para além do que seria humano, e para aquilo que nem é importante: para o fútil excessivo (um pouco de futilidade, sim, ou nos desumanizamos), para o mais do que tolo (um pouco de tolice, sim, ou viramos estátuas). Uma hora menos de trabalho extra por dia - não vou poder comprar aquele tênis importado caríssimo, o menino vai emburrar - pode significar uma hora de carinho, de convívio a mais. Um fim de semana menos de trabalho extra - mas como vou dar aquela roupa caríssima, a menina vai se frustrar, e tem o cursinho de inglês, e o de nem lembro o quê... e a mulher quer aquelas férias naquele hotel caro, e chegou a hora de trocar o carro... - pode representar um encontro onde a gente vai enxergar de verdade o filho, o irmão, a amante, o marido, o amigo.

Ou a si mesmo, ficando quieto na rede, na praça, até na cama, pensando. De bobeira. Olhando a nuvem, o galho de flor pela janela, deitado na grama ou na areia com a cara no sol, sentindo o mundo respirar, e fazendo parte desse ritmo imenso. Sentindo que somos gente, dentro de algo misterioso chamado vida. Reformulando nossos planos, tentando saber o que queremos para nós.

Muito do que gastamos (e nos desgastamos) nesse consumismo feroz podia ser negociado com a gente mesmo: uma hora de alegria em troca daquele sapato. Uma tarde de amor em troca da prestação do carro do ano; um fim de semana em família em lugar daquele trabalho extra que está me matando e ainda por cima detesto.

Não sei se sou otimista demais, ou fora da realidade. Mas, à medida que fui gostando mais de meus jeans, camisetas e mocassins, me agitando menos, querendo ter menos, fui ficando mais tranqüila e mais divertida. Sapato e roupa simbolizam bem mais do que isso que são: representam uma escolha de vida, uma postura interior.

Nunca fui modelo de nada, graças a Deus. Mas amadurecer me obrigou a fazer muita faxina nos armários da alma e na bolsa também. Resistir a certas tentações é burrice; mas fugir de outras pode ser crescimento, e muito mais alegria.

Cada um que examine o baú de suas prioridades, e faça a arrumação que quiser ou puder. Que seja para aliviar a vida, o coração e o pensamento - não para inventar de acumular ali mais alguns compromissos estéreis e mortais.

Lia Luft in "Pensar É Transgredir"

O ALTO CUSTO DE AMAR

Muitos vivem com a crença de que "as melhores coisas da vida são gratuitas". Eu ,particularmente, tive experiências suficientes para aprender que algumas das melhores coisas da vida são dolorosamente caras. Geralmente, parece que as recebemos de presente, mas elas contém um preço invisível. O amor é uma delas. Nós, que perdemos entes queridos, aprendemos com nosso pesar que pagamos um preço enorme pelo amor que deixamos fluir.Pagamos com a moeda da dor: sentindo falta, saudades. Dói muito . A verdade mais amarga é que cada história de amor tem um final triste e, quanto maior o amor , maior será a tristeza quando ele termina. Quando amamos colocamos um refém nas mãos da sorte. Quando nos permitimos gostar de alguém, tornamo-nos vulneráveis à angústia e à desilusão. Qual é nossa opção , afinal ? Não devemos permitir-nos amar ninguém ? Nunca deixar que alguém seja importante para nós ?Negar-nos a maior das alegrias outorgada por Deus ?

E, inclusive , pode-se agregar mais uma consideração . Se um anjo viesse até nós no momento de dor mais profunda e se oferecesse para nos livrar de todo o sofrimento e melancolia , mas também de todas as nossas lembranças do passado e das aventuras que compartilhamos, aceitaríamos o acordo ? Ou consideraríamos essas lembranças tão valiosas , tão infinitamente queridas , que a guardaríamos em nosso coração e recusaríamos comprar o consolo imediato pagando o preço de cedê-las ?


Uma antiga lenda grega faz referência a essa escolha. Fala de uma mulher que foi ao Rio Estige onde Caronte, o balseiro gentil , estava pronto para levá-la a região dos mortos.O homem lembrou-a de que tinha o privilégio de beber a água do Letes, e se o fizesse, ela se esqueceria completamente de tudo o que deixava pra tras.
Ela respondeu ansiosa: "Esquecerei tudo o que sofri". E Caronte objetou :"Mas lembre-se de que também se esquecerá das alegrias". A mulher respondeu : "Esquecerei os meus fracassos". O velho balseiro completou : "E também das vitórias". Ao que ela retrucou :"Esquecerei o quanto foi ferida". "E também o quanto foi amada".

Então a mulher parou para ponderar com cuidado a situação . A história termina nos revelando que ela não tomou a a água do Letes. Preferiu manter suas recordações, mesmo as de dor e sofrimento, em vez de abrir mão das alegrias e amores. Alguém escreveu que "quem não sofreu não foi humano" . A dor passa, as recordaçoes permanecem ; os seres amados partem , mas o sentimento de tê-los tido perdura . E somos muito mais ricos por termos arcado com o alto custo de amar.

Marcelo Rittner